Quando se fala da pureza que o futebol feminino ainda mantém, também se vê nisto: meias-finais de um Campeonato do Mundo, 86 minutos, Lauren Hemp trabalha o lance, conduz a bola e desmarca Alessia Russo para fechar, de uma vez por todas, o duelo com a Austrália. Na repetição, ele ali está: o olhar de Hemp para um lado, o passe para o outro, uma espécie de Showtime dos Lakers, mas num campo de futebol de onze.
Foi um grande jogo aquele que deixou a Inglaterra a um pequeno passo de juntar o título mundial, o primeiro, ao título europeu, inédito também, conquistado há um ano em casa. A vitória por 3-1 frente à anfitriã Austrália, num Estádio Olímpico de Sydney a abarrotar, fez-se de uma equipa que foi capaz de ultrapassar o que ameaçava vir a ser exibição antológica de Sam Kerr, a estonteante avançada australiana, finalmente em condições físicas ideais, cujo o génio quase virava a lógica de um jogo que se diz coletivo.
Quando Lauren Hemp enganou a defensiva australiana com aquele olhar extraviado, recurso que não estamos exatamente habituados a ver num campo de futebol por exigir uma rapidez de pensamento para outros ritmos de jogo, Kerr tentava do outro lado, por todos os meios, levar às costas a sua equipa. A 1.ª parte das australianas foi pobre, dando a primazia da posse à Inglaterra, permitindo às europeias tempo e paciência para encontrar os espaços. Como aquele que Ella Toone achou na área adversária aos 36’, num lance que nasceu de lançamento lateral na esquerda, seguiu para a linha lateral até a jogadora do Manchester United dar as boas-vindas ao passe atrasado com uma sapatada com o peito do pé que surpreendeu Mackenzie Arnold – a bola saiu para o canto esquerdo da guardiã australiana, sem qualquer chance de lá chegar.
A vantagem era justa e um castigo à passividade australiana. Sam Kerr, a estrela das Matildas, havia estado sempre longe dos centros de decisão do jogo, impiedosamente marcada. Na 2.ª parte, não seria assim.
Aí a equipa do sempre enérgico Tony Gustavsson entrou com outra atitude. Nos primeiros minutos, Sam Kerr e Caitlin Foord apareceram na área para responder a cruzamentos da direita, mas sempre com boa oposição das defesas inglesas. Não sendo assim, foi à bomba: aos 63’, um roubo de bola transformou-se numa transição rápida, com Sam Kerr a receber a bola ainda antes do meio campo. Aí trocou as voltas a Millie Bright e Jessica Carter, suas colegas no Chelsea, e de longe armou o remate que só acabaria no fundo das redes de Mary Earps. Um grande golo e uma injeção de adrenalina necessária para a equipa da casa.
A desilusão de Sam Kerr
Maddie Meyer – FIFA
Não duraria muito, no entanto, o entusiasmo. A Inglaterra de Sarina Wiegman reagiu bem ao golo sofrido, emplacou logo dois lances de perigo e aos 71’ voltaria para a frente do marcador. Após um passe longo, a lance parecia controlado pela defensiva da Austrália, mas a pressão de Lauren Hemp obrigou ao erro de Carpenter, com a número 11 inglesa a roubar a bola e a aproveitar o presente para marcar.
Daí até ao tal passe sem olhar da jogadora do Manchester City, estrela deste jogo e estrela neste Mundial, que rouba e oferece com a mesma desfaçatez, viu-se a luta inglória de Sam Kerr, que esteve duas vezes perto de novo momento de felicidade, desespero na cara a cada falhanço, a cada bola que foi uns centímetros ao lado, a cada passe que não saiu na perfeição. Por ela, a Austrália também merecia a final, mas a aposta inglesa dos últimos anos está aqui para provar que é este o caminho. O único caminho.
Um ano depois de se terem defrontado nos quartos de final do Europeu, com direito a reviravolta no prolongamento por parte das inglesas, há novo duelo com Espanha, agora na final. E aqui não há milagres: joga-se por Inglaterra e por Espanha e pelas suas equipas nos respetivos campeonatos o futebol mais entusiasmante e competitivo a nível mundial. Uma evolução forte, que em poucos anos deixou para trás clássicos candidatos como Alemanha, Estados Unidos, Brasil ou Suécia. A prova que uma liga forte é essencial e que os clubes também levam uma parte da “culpa” nos bons resultados das seleções, que tantas vezes ainda não contam com o apoio incondicional das respetivas federações. No domingo, as novas campeãs também serão campeãs de uma nova era.